top of page

O GRAVETO

Por que as imagens nos seduzem? Não todas, claro, e apenas
as verdadeiramente sedutoras resultam de um tipo de sabedoria

particular: a capacidade de identificar no espaço ao redor
o recorte exato, a redução do real ao seu essencial, capaz de nos

ensinar a ver o que não vemos. Diante da imagem criada, somos

então abatidos pelo prazer de uma revelação. É justamente isso

que acontece ao folhearmos cada página deste Entretanto, com

as fotografias de Clovis Ferreira França.

A primeira imagem, um graveto mínimo espetado nas areias

dos Lençóis Maranhenses, por falta de referências espaciais,

nos remete a um totem gigantesco fincado no deserto – quem

conhece a escultura de Richard Serra no deserto do Qatar

vai compreender a comparação. Já aí somos envolvidos por

uma melodia, algo como um canto de sereia, que nos conduz

hipnotizados páginas adentro, na travessia de um imenso

universo que nossos olhos distraídos pela opacidade do

cotidiano desconhecem.

 

O que temos são, de fato, as tais imagens sedutoras. Cenas comuns

como atravessar uma sala, descer uma escada, abrir uma porta e

sair para o quintal – enfim, movimentos que se repetem em nosso

dia a dia sem despertar grandes emoções – são reinventadas e

tornam-se luminosas pela força transfiguradora do olhar do artista.

Os panoramas são os mais diversos. Sofisticados, como a sala de

um petit château finamente mobiliado, ou singelos, como roupas penduradas em um varal nos fundos de uma casa. Ou ainda as

duas coisas ao mesmo tempo, isto é, imagens sofisticadas em sua simplicidade. No percurso contínuo do olhar atento do fotógrafo,

nada pode escapar.

Percorrendo espaços interiores, a mágica de sua alquimia torna

preciosas as mais diversas situações: um corrimão anguloso

encimado por dois peões finamente torneados; a mirada de

esguelha de uma biblioteca iluminada por entre as folhas abertas

de uma janela; a escada de pisos gastos que nos leva à porta de

saída de uma casa secular; as cadeiras, o quadro na parede, o vaso

âmbar de vidro colocado sobre uma toalha com suas dobras na

quina de uma mesa art déco.

Há ainda elementos que poderiam ser simples detalhes, mas
que na verdade são pontos focais que reverberam no espaço a nos

atrair o olhar: a chave na fechadura presa a uma grosso barbante

que faz as vezes de chaveiro; o pedaço de um corrimão de ferro

que sugere uma interrogação; o esparadrapo a tapar um buraco

no tecido fino de uma poltrona Luís XVI; o desenho estilizado
da flor de lis no piso quadriculado de uma sala; os reflexos no

espelho e no vidro do oratório de um dormitório.

Abandonando os espaços internos, saindo à luz do dia e revelando

sua formação de arquiteto, o autor nos surpreende com uma
série de pequenas escadas de acesso às portas de casas de beira de

estrada, todas iguais na serventia, mas diferentes na solução de

criar degraus. E, seguindo o ritmo, chega a vez da revelação do

artista plástico que habita o autor. São imagens que nos mostram
a geometria dos mais variados cenários e situações: faixas pintadas

sobre o asfalto; perfis coloridos de tábuas empilhadas; o balcão

rústico de uma venda de praia; a rosácea desgastada que decora

a placa metálica de um parque de diversões; a surpreendente

aparição de um Volpi pintado sobre a fachada de uma casa

modesta de uma pequena cidade nordestina.

Além da leitura de cada fotografia por si só, pares de imagens

dispostas lado a lado nos levam a novas reflexões, diante da

cumplicidade ou do antagonismo criado. Outras, ainda, ocupando

páginas duplas, pontuam e dão fôlego à narrativa – como quando

nos vemos diante de uma cena marítima cinzenta ou da simetria

quase perfeita de uma sala elegante de portas semiabertas

filtrando a luz exterior.

Sem nenhum apoio tecnológico capaz de dar ares supostamente contemporâneos ao seu trabalho, acompanhado somente por

uma câmera solitária ou um aparelho celular tornado bloquinho

de notas, Clovis nos ensina que as imagens sedutoras, aquelas que reinventam “a vida como ela é”, que “põem no que está o que

não está”, dependem de qualidades essenciais: a paixão do olhar

somada à capacidade ímpar de saber ver.

 

CRISTIANO MASCARO

FOTÓGRAFO

IMG_2104 copy.jpg

 

Lençois Maranhenses,

Maranhão, Brasil

2011

bottom of page