UM ENCONTRO DA MELANCOLIA DO TEMPO
E A ALEGRIA DA COR
Nossas vidas são feitas de vários encontros.
Alguns improváveis, outros inexplicáveis.
Encontros entre imagens, sentimentos e temporalidades.
Entre o olhar do fotógrafo, o assunto retratado e a emoção
de quem vê. Encontros entre você e eu.
A realização deste livro vai ao encontro de vários deles.
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Desde sempre me vi intrigado com a passagem do tempo.
Assim como sempre gostei de escutar histórias.
Fotografar talvez seja uma maneira de contá-las.
Fotografar possibilita atravessar o tempo.
Viajar e vislumbrar paisagens imaginárias.
Procurar janelas abertas e fachadas enfeitadas de luz.
Submergir rumo ao desconhecido guardado
em armários e gavetas.
Fotografar significa entregar-se a uma porção de coisas.
Percorrer corredores, escadas e estradas.
Mirar em espelhos e reflexos enfeitiçados pela cor.
Envolver-se em vazios habitados por sombras e ladrilhos
e encontrar paredes patinadas de mistério, afeto, solidão.
Roubar o acaso de personagens encontrados, que, ao posar,
replicam-se involuntariamente em novos instantes e viralizam
em futuros Instagrams.
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Comecei a fotografar com uma câmera reflex de negativos
35mm no final da década de 1970. Dessa época sobrevivem
algumas imagens em branco e preto caseiramente
ampliadas. Numa série de registros de viagem ao Nordeste
brasileiro eu vejo que já direcionava o meu olhar para
possíveis narrativas.
Hoje, ao vasculhar arquivos intermináveis, deparo assombrado
com a finitude das coisas, que inexoravelmente acabam,
a despeito da presença impressa nas fotografias. As histórias
fantasiadas e as emoções vividas foram reduzidas a memórias,
e poucas terão a chance de sobreviver, quem sabe um dia,
ao serem recontadas.
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No ano 2000 passei uma temporada em NovaYork e estudei
no International Center of Photography (ICP). Refletindo sobre
o meu fazer fotográfico durante esse aprendizado, identifico
a vontade de criar sequências de imagens que levassem a um
novo entender.
A serie ao lado faz parte do ensaio R - Encounters, resultado
dessa experiência. Ao alinhar quatro fotos inicialmente
desconectas, tento rimá-las numa frase poética que propõe
a cada observador o seu imaginar.
Anos depois – com um pouco mais de bagagem no olhar –,
percebo que essa mesma questão continua a me atrair:
o acontecimento gerado ao aproximar imagens que nunca
haviam se visto antes e que se reconhecem, se provocam,
criam estranhezas e se ressignificam, fazendo a nossa caixa-
-preta confabular e sonhar.
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No processo de desenhar este livro pensei nas possíveis
conversas fotográficas entre instantes paginados lado a lado,
conjugando espaços e tempos entre si distantes. Nos diálogos
silenciosos, infinitos, coloridos ou nem tanto, iluminados
às vezes por uma existencial melancolia; em outras, por
uma acolhedora alegria.
Tentei construir um virar de páginas de modo a conduzir
a alma de um estado a outro, como no transitar da foto de
um confessionário em seu solene roxo-quaresma à sua vizinha
cena pré-matrimonial vestida de lilás-felicidade, confluindo
na página seguinte nas fachadas achadas em cinza e lavanda.
A percepção de uma parede turquesa, a aparição de um
rosa-esperança ou um amarelo iluminado me contagiam,
alimentam e encaminham a um próximo capítulo.
Tenho que reconhecer que as cores são habitadas de magia
e que sua energia pode nos encantar. Texturas, linhas,
repetições e ornamentos também exercem essa sedução.
Assim como as flores e seu arranjar têm igual poder sutil
de me transformar.
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Sem ter uma causa ou gramática definida, fotografei o que
morava escondido na minha memória. O que me era incerto
e aquilo que consegui reconhecer no mundo.
Saí em busca da beleza impermanente dos acasos, desobrigada
de elucidar os mistérios da vida, mas que de alguma forma
me resgatasse. E que, como na música ou no cinema, pudesse,
entretanto, nos salvar em um outro tempo e lugar.
CLOVIS FERREIRA FRANÇA
Palácio Nacional
Mafra, Portugal
2017
R. Encounters
Bellport, NY, USA
2000